Volvidos quase vinte anos voltara. A ponte que ela hoje sabia chamar-se Valentré continuava imperturbável olhando o rio e protegendo a cidade. Para além da ponte descobrira a cidade – de província – sem pretensões por se conhecer bela e segura. A Torre dos Enforcados, onde estranhamente nunca ninguém fora enforcado, disputava as atenções do outro lado do rio. E as ruas e os cafés e a lojinha do material de pintura e o rio e, ali tão perto, St. Cirq Lapopie – a primeira aldeia francesa a ter a denominação de Le plus beau village de France e, ainda aí, outra vez que por lá passara, o conde francês no seu pequeno castelo armado em Museu do Surrealismo; esse homem alto, belo, de uma finura de pintura antiga apesar da sua muita idade e de um cansaço já bastante notório que lhe mostrara, quase à exaustão, os desenhos e pinturas de Picasso, as cores de Picabia, as fotografias de Man-Ray, os poemas de Breton, seus amigos de Paris quando aí tivera uma galeria logo que regressara do Brasil onde vivera longo tempo. Falava português com um ligeiro sotaque pois a mulher, entretanto falecida, era portuguesa. Passara a lua-de-mel em Sintra, conhecia a Ericeira. Tudo isto ela soube quando ele percebeu que ela era portuguesa. Conheceu o seu escritório. Um amplo espaço surrealista num quarto com uma impressionante janela de canto do séc. XVI sobre o Lot e onde por cima da lareira pontificava um quadro de Picasso que lhe era dedicado. A custo, deixou o velho e o seu castelo saído de antanho. Trocou-o pelas grutas de Pech-Merle e por essa espontânea forma primitiva de pintura cuja força se estendeu por todos estes anos.
Voltou. (Re)voltou. Cahors é aquele amor perene que não se explica, sente-se.
Esta, a sua forma de viajar.
Pont Valentre -Cahors
4 comentários:
muito belas as memórias e a forma de revisitação. além da imagem da ponte...
Bonita viagem de memórias, excelentemente ilustrada nas palavras e na imagem!
Memórias excelentes e o esboço é sensacional!
Um binómio texto-imagem delicado e intenso.
Enviar um comentário