Draw everywhere, and all the time. An artist is a sketchbook with a person attached.
Irwin Greenberg





2005-10-06

Tinta da China # 4

Tinha vinte e um anos quando passou por lá a primeira vez. Sabia da existência da Ponte, não lhe sabia o nome mas no Michelin tinha-lhe visto a sombra. Quando se aproximaram, lembrou-se uma vez mais da sua existência. Passaram. Nada viu. Aí despertou em si a certeza de que estas não eram as suas viagens. De que tudo aquilo era um engano. Itinerários. Horários. Obrigações. Não, muito obrigada. Já lhe tinha acontecido na mesma viagem embora diferentemente. Fora no Mont St. Michel. Um dia. E ela deixara os olhos na bruma, na marée, no insólito, no Belo e a alma naquela Merveille onde em todos os recantos descobria o oceano e o infinito. Também falara em deixar cair qualquer outra terra e ficar ali mais tempo. E os itinerários? E os horários? E as obrigações?

Volvidos quase vinte anos voltara. A ponte que ela hoje sabia chamar-se Valentré continuava imperturbável olhando o rio e protegendo a cidade. Para além da ponte descobrira a cidade – de província – sem pretensões por se conhecer bela e segura. A Torre dos Enforcados, onde estranhamente nunca ninguém fora enforcado, disputava as atenções do outro lado do rio. E as ruas e os cafés e a lojinha do material de pintura e o rio e, ali tão perto, St. Cirq Lapopie – a primeira aldeia francesa a ter a denominação de Le plus beau village de France e, ainda aí, outra vez que por lá passara, o conde francês no seu pequeno castelo armado em Museu do Surrealismo; esse homem alto, belo, de uma finura de pintura antiga apesar da sua muita idade e de um cansaço já bastante notório que lhe mostrara, quase à exaustão, os desenhos e pinturas de Picasso, as cores de Picabia, as fotografias de Man-Ray, os poemas de Breton, seus amigos de Paris quando aí tivera uma galeria logo que regressara do Brasil onde vivera longo tempo. Falava português com um ligeiro sotaque pois a mulher, entretanto falecida, era portuguesa. Passara a lua-de-mel em Sintra, conhecia a Ericeira. Tudo isto ela soube quando ele percebeu que ela era portuguesa. Conheceu o seu escritório. Um amplo espaço surrealista num quarto com uma impressionante janela de canto do séc. XVI sobre o Lot e onde por cima da lareira pontificava um quadro de Picasso que lhe era dedicado. A custo, deixou o velho e o seu castelo saído de antanho. Trocou-o pelas grutas de Pech-Merle e por essa espontânea forma primitiva de pintura cuja força se estendeu por todos estes anos.

Voltou. (Re)voltou. Cahors é aquele amor perene que não se explica, sente-se.

Esta, a sua forma de viajar.





Pont Valentre -Cahors

4 comentários:

musalia disse...

muito belas as memórias e a forma de revisitação. além da imagem da ponte...

Rui Afonso disse...

Bonita viagem de memórias, excelentemente ilustrada nas palavras e na imagem!

mfc disse...

Memórias excelentes e o esboço é sensacional!

JJ disse...

Um binómio texto-imagem delicado e intenso.